segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

PAGANDO DÍVIDAS DE ANTIGOS NATAIS


Zé das Couves
O som do despertador invade o quarto, BESTILDE ASSADA não se incomoda, perdida em pensamentos permanece olhando a rua. Vê quando seu irmão chega das festas natalinas e  estaciona, ao descer ele a vê na sacada acena e entra. BESTILDE ASSADA vai até o banheiro e constata o efeito da noite mal dormida, nada que um bom óculos escuros não dê jeito. Seu irmão FOLOGÊNIO UTIGUAÇU está na sala e a recebe com um abraço. Mesmo com a insistência do irmão e de CHUPICLEIDE sua fiel ajudante na organização da casa, BESTILDE ASSADA não come nada, quer apenas fazer o que tem para fazer e que este dia termine. No carro FOLOGÊNIO UTIGUAÇU começa a numerar as qualidades de VERDUGO, BESTILDE agradece em pensamento pelos óculos, assim pode disfarçar seu descontentamento com o irmão. Ela mais que ninguém conhecia as qualidades de VERDUGO, afinal foi casada com ele por dez anos, mais que suas qualidades conhecia seus defeitos mas quem lembra deles nessas horas? FOLOGÊNIO estaciona em frente ao longo muro branco, BESTILDE olha ao redor e reconhece alguns familiares e amigos de VERDUGO mais o que chamou mesmo a sua atenção era o número de pessoas que passava pelo portão, e se pergunta se todas essas pessoas vieram se despedir do seu marido. Algumas delas se aproximam dando-lhe os pêsames, BESTILDE ASSADA permanece em silêncio. Entra na sala em que o marido está sendo velado, se aproxima do caixão e mais uma vez agradece pelos óculos, não consegue acreditar que aquela coisa com um cheiro repugnante é o seu marido, vinte e sete anos de diferença e nunca o vira tão frágil. Olha as mãos cruzadas sobre o busto e vê a aliança, diferentemente das outras pessoas VERDUGO a usava na direita, ela a puxa e se surpreende com a facilidade com que ela sai, na mão esquerda está um anel 18k cravejados de diamantes e com uma linda pedra safira azul, ela tenta tirá-lo ao contrário da aliança esse não sai, até parece que a mão inchou de repente. FOLOGÊNIO UTIGUAÇU vendo o esforço da irmã oferece ajuda: -Não. Era importante pra ele, talvez seja sua vontade levá-lo. Durante o sepultamento lindas palavras são ditas, umas em homenagem a VERDUGOoutras de conforto a jovem viúva. Todos já tinham ido embora. Só ele e ela observam os coveiros terminarem seu trabalho: -Vamos BESTILDE, já é tarde você precisa comer e descansar. -Pode ir, eu vou de táxi. FOLOGÊNIO conhecia bem a irmã para saber que não adiantava insistir. Sozinha ela se aproxima da lápide, tomando cuidado para não pisar na terra ainda fofa, e inicia um monólogo: -Dez, dez anos da minha vida esperando por esse momento. Dez anos esperando para me ver livre de você. Não preciso mais abusar da maquiagem para disfarçar as marcas, não preciso mais fingir felicidade para sua família e amigos nem inventar desculpas para fugir do meu irmão e de suas perguntas de como vai minha vida. Agora eu sou livre. MELHOR AINDA: LIVRE, JOVEM E RICA. Sabe o que é mais irônico nisso tudo? você me mantinha presa, me vigiava e a menor suspeita de que estava olhando para os lados me espancava, tudo isso por medo de ser traído. Nunca que você, um machista orgulhoso iria permitir umas coisas dessas. Mal sabia você que durante esse tempo todo, sua cama, que você fez questão de importar, vem sendo o lugar onde sou mais feliz, o lugar onde a CHUPICLEIDE me faz sentir o que você nunca foi capaz. Você não imagina o quanto rimos de você naquela cama. Por que você acha que eu insisti tanto para trazê-la para trabalhar em casa? Como queria ver sua cara agora. BESTILDE ASSADA gargalhava histericamente: -Nojo, tudo que sinto por você é nojo. Numa tentativa de chutar a lápide ela tropeça e derruba os óculos em cima da terra fofa, tenta pegar e fica com o salto preso na terra, tentando se soltar se desequilibra e fica agora com os dois pés presos e sente afundar ainda mais. Grita por socorro, olha para os lados e não vê ninguém, desesperada começa a cavar. E não percebe que está sendo observada até ouvir o barulho da bengala. BESTILDE se levanta e vê um idoso de terno todo branco em cima da lápide vizinha: -Por favor, me ajude. Meus pés estão presos, chame alguém, por favor. O idoso sorri, mas o olhar é frio, maldoso.  Ela sente um arrepio pelo corpo todo. –Por que ajuda menina? Você não precisa de ajuda. CHEGOU A HORA DE PAGAR SUAS DÍVIDAS. BESTILDE ASSADA  não tem tempo de perguntar do que ele está falando, sente algo no tornozelo. Mãos sujas, geladas, inchadas e com um anel de ouro cravejados de brilhantes e uma safira azul, a está puxando. Em pânico ela se debate e grita por socorro: -Não adianta gritar menina. Ninguém virá. -Não deixa ele me levar, por favor, eu não fiz nada, eu não fiz naaadaaaaaaa. -Não fez nada? Hora menina, tente se lembrar. –Por que eu o trai? Eu o trai, mas o que ele fez comigo por dez anos foi castigo suficiente. Me tira daqui. BESTILDE já tem terra até os joelhos. -Você acha mesmo que essa é minha preocupação? Quem traiu quem ou porque alguém trair? Há minha menina, não, claro que não, isso é conversa para comadres e eu tenho mais o que fazer. -Eu faço o que você quiser, dou o que quiser, mas não me deixa morrer aqui, não deixa ele me levar. -Não há nada que você possa fazer e a única coisa que poderia me dar já me pertence. -Pelo amor de Deus, tenha misericórdia. O idoso fica ereto e larga a bengala, seus olhos adquirem um tom vermelho, o vapor sai por todo o seu corpo e quando fala é como se mil vozes falassem junto. -Não coloca o sujeito no meio. Quando em uma de suas tórridas tardes de amor não foi a ele que você prometeu a sua alma. Já com terra na altura dos seios ela chora desesperada. -Foi uma brincadeira, sem querer, não falei por mal. -Devia ter cuidado com o que fala. Nunca se sabe quem pode estar ouvindo. Aos poucos o idoso volta a sua frágil aparência. -Esse foi um dos meus melhores negócio, você vendeu sua alma para ficar com sua doce CHUPICLEIDE e com todo o dinheiro do seu marido e o teve por 48 horas... Mas teve e seu marido vendeu a dele para passar a eternidade com você. Todos tivemos o que queríamos. Viu só? Não sou tão mal assim. Com a terra prestes a cobrir todo o rosto BESTILDE ASSADA  ainda o vê se despedir. -Te vejo em casa, minha menina. E com uma piscadela o frágil senhor bate a bengala no chão, um buraco se abre e em meio a fumaça e uma luz alaranjada desaparece. FOLOGÊNIO UTIGUAÇU  ainda procurou pela irmã mas acabou por aceitar, que tomada pela dor da perda BESTILDE tenha saído sem rumo, FOLOGÊNIO nunca se perdoou por tê-la deixado sozinha. Muitos anos depois pessoas relatam que ao visitar os túmulos de seus entes queridos ouvem o que parece um choro de mulher, seguido de uma gargalha de homem...





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